O mal-estar do ornamento
Dissimulação, maquiagem. Expressão da subjetividade de um grupo, linguagem ou signo. Documento histórico, emblema de modismos passageiros. Um crime. Interpretados de distintas maneiras, os ornamentos foram considerados um dos pecados mais degenerados da arquitetura. Resistir à tentação da decoração se tornou uma virtude, um sinal legítimo de autenticidade e futuro possível.
No prestigiado "Ornamento e Crime", Adolf Loos questiona o uso dos ornamentos, baseado em uma noção de história progressiva, em que o passado estaria subordinado ao futuro, entendendo que para viver na metrópole, a supressão da identidade no exterior era necessária e que por isso a pureza de forma começaria a ser vista como possibilidade. Nesse contexto, os ornamentos estariam relegados ao atraso (dos povos), aos caprichos (das mulheres), à imaturidade (do ser), ao desvio (dos desajustados), à desordem (do ecletismo à mistura de raças) e a decadência (do antigo regime). Como resultado, foram privilegiados os princípios da racionalidade, do essencialismo natural da “verdade dos materiais” e do funcionalismo, ou seja, os valores morais dominantes da ordem burguesa e patriarcal cuja produção industrial em massa do século XX foi eleita como principal modelo.
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Olhares queer sobre a arquiteturaEnunciando a rejeição moderna aos elementos ornamentais, a autora Aline Payne reforça que o ornamento nunca deixou de existir no interior dos ambientes domésticos, uma vez que os objetos do cotidiano deram continuidade ao papel decorativo e simbólico outrora realizado pela ornamentação.
A partir dos anos 1960, as críticas a este universalismo modernista eram cada vez mais constantes. Entre as viagens às cidades tradicionais europeias e as incursões nos subúrbios “feios e banais” norte-americanos, as referências da arquitetura ocidental transformaram-se radicalmente. Um exemplo mais direcionado desta crítica é o texto “Ornamento não é crime”, no qual Joseph Rykwert direciona a crítica aos antecedentes históricos que levaram a essa desqualificação dos ornamentos e analisa os debates da época em que eles começavam a ser reinseridos na teoria da arquitetura, não mais com os mesmos significados do passado, mas com novos sentidos pertinentes aos temas contemporâneos.
Os debates sobre os ornamentos se aproximam dos temas de gênero e sexualidade em livros como "The Language of Post-modern Architecture" de Charles Jencks, que apresenta uma abordagem sensual sobre o espaço e descreve o estilo “Gay Eclectic”, no qual relaciona valores da homossexualidade burguesa branca a procedimentos da arquitetura pós-moderna como a ironia, a paródia e o travestismo (a partir de uma terminologia usada pelo autor em referência a não naturalização do binarismo de gênero), de modo semelhante como Susan Sontag, em "Notas sobre o Camp".
Dos estudos feministas às primeiras incursões conceituais, as discussões queer e trans sobre arquitetura podem ter um papel desestabilizador em relação às convicções universalizantes de racionalidade e progresso, criando oportunidades de criação menos autocráticas.
Para Jack Halberstam, "as concepções de gênero mudaram irrevogavelmente, de uma visão binária para uma múltipla; da centralização da incorporação física à espacialização das identidades; do definitivo ao fractal. E, à medida que novos gêneros foram formados, os antigos também foram destruídos. As ideologias de gênero que antes facilitavam as conexões intuitivas - entre o lar e o corpo materno, ou o arranha-céu e a arma e o corpo masculino, ou a cidade e o navio à feminilidade, etc. - agora estão completamente desarranjadas".
Em que medida os ornamentos podem mobilizar um desejo arquitetônico mais movediço e menos essencialista? Quais visões podem emancipar o ornamento das ideias comuns sobre exagero, crime e passado?
O ornamento como identidade
As gramáticas dos ornamentos cumprem diversas funções sociais e de significado que permitem distinguir civilizações e subjetividades, estabelecer atravessamentos culturais e compor distintas narrativas espaciais. A utilização da ornamentação sugere uma conexão com outros territórios e tempos, e permite que diferentes expressões sejam reconhecidas em contextos sociais cada vez mais diversos e complexos.
As questões de gênero são proeminentes no debate do ornamento. Os elementos arquitetônicos relacionados com a estrutura foram privilegiados pelo ideal funcionalista e considerados mais relevantes, assumindo características ditas masculinas que ganharam protagonismo em detrimento dos revestimentos ou da “mera decoração”, considerados supérfluos e não autênticos - portanto, femininos. Os ecos dessa prática persistem até hoje. Enquanto os espaços são concebidos de acordo com essa polarização de gênero, eles passam a funcionar como dispositivos disciplinares, na concepção de Foucault, que são fruto e, ao mesmo tempo, informam uma prática de projeto baseada na negação do ornamento. A recorrente manutenção de uma busca por autenticidade, de uma verdade dos materiais, ambas em favor da austeridade, atualizam a intenção velada de negar aspectos tradicionalmente associados ao feminino.
A influência do legado arquitetônico do século XX, atualizado por leituras canônicas, favoreceu a manutenção da racionalidade e da tecnologia como ideais “neutros” e “eternos”, que continuam a subjugar os significados culturais que pulsam de ornamentações presentes em outras formas de produção social do espaço e dos edifícios. A supressão do ornamento, nesse caso, pode ser lida como uma relação política, na medida em que tem ficado claro que a universalidade da modernidade esteve articulada com a colonialidade, como sugere Aníbal Quijano e os intelectuais críticos da colonização. Portanto, a ação de modernizar partiu quase sempre da premissa de solapar identidades pré-existentes. O ornamento sofreu consequências a partir desse movimento e, por isso mesmo, também representa um sinal de resistência a esse processo.
Esses efeitos de destituição do ornamento pela arquitetura moderna são absorvidos de forma desigual por distintos territórios - principalmente não ocidentais - em que o uso de elementos referenciais e figurativos continuaram a ser produzidos, inclusive inseridos na produção arquitetônica moderna. Nestes contextos, os edifícios são compostos por sistemas de ornamentação que desempenham um papel central na atribuição de sentido e simbolismo às estruturas construídas. Assim, houve uma resistência ao abandono de elementos figurativos, evitando a ausência de elementos ornamentais e seu consequente esvaziamento da transmissão de signos e elementos de identidade cultural.
Abrindo os caminhos
As linguagens simbólicas possuem sistemas que vão além da concepção de profissionais da arquitetura, de modo análogo a linguagens técnicas, mas que nem sempre recebem a mesma atenção, investimento e rigor. A própria ideia de ornamento, como pode ter dado a impressão até aqui, não se refere ao mesmo conjunto de elementos ou objetos ao longo da história.
Ainda na década de 1970, ao criticarem o Modernismo, os arquitetos Denise Scott Brown e Robert Venturi já afirmavam que a negação do ornamento também correspondia a uma ferramenta de comunicação e possuía um aspecto simbólico: “Quando os arquitetos modernos abandonaram, com retidão, o ornamento nos edifícios, inconscientemente eles projetaram edifícios que eram ornamento.” Ainda que tenham incorporado aspectos simbólicos, obras de arte e orientado a forma do edifício a partir de princípios estéticos, políticos e sociais, os modernistas preservavam a hierarquia e a dicotomia polarizada entre estrutura e revestimento, sempre mantendo a sobriedade proeminente desta linguagem que adquiriu um sentido de exclusividade ou como Rem Koolhaas chegou a afirmar: “O mínimo é o derradeiro ornamento, um crime virtuoso, o Barroco Contemporâneo.”
Nas discussões sobre barroco pensadas por Bolívar Echeverría em "A modernidade do Barroco", em disputa com as provações de Koolhaas, o escritor sugere que estamos em "um mundo que vacila, uma ordem carcomida por sua própria inconsistência, que se contradiz a si mesma e se desgasta nisso até a exaustão; junto com ele, uma confiança elementar, profunda, que desaparece sem remédio. O mundo que vacila é o da modernidade, o da confiança em uma cultura que ensina a viver o progresso como uma anulação do tempo, a fundar o território em uma eliminação do espaço, a empregar a técnica como uma aniquilação do acaso; que coloca a natureza-para-o-homem como substituto do Outro, do extra-humano: que pratica a afirmação como destruição do negado."
O retorno da ornamentação e das linguagens do excesso, mais do que simples ostentação, também se afirmam como desafios à posição de superioridade aparente do mínimo. O ornamento se apropria assim de modo crítico às estratégias de dissimulação, tensionando o presente com certas projeções do futuro, distorções do passado ou meras manipulações entre o que é verdadeiro e o que é falso.
Ao entrar em contato com a arquitetura árabe, o arquiteto suíço Jacques Herzog reconheceu a decoração como uma ferramenta para a destruição do que chamou de forma “válida”. Segundo ele, o ornamento ajudou a superar o obstáculo da forma, de modo que ele evita a exibição dela e permite a introdução da dúvida. Assim, a ornamentação permite o diálogo entre campos opostos: masculino e feminino, tradição e dissidência, civilização e barbárie.
Tais cruzamentos permanecem rechaçados, demonstrando uma dificuldade de lidar com a existência de culturas antes invisibilizadas e de se misturar com elas. Agora, a produção do espaço pode ser questionada e disputada pelas identidades que diferem da normatividade do progresso, numa tentativa democratizante e de multiplicidade de corpos, performatividades e ideias, como revisa a filósofa Judith Butler em "Corpos que importam".
Manter o ornamento como bode expiatório sugere uma reafirmação do status quo, colocado pela régua modernizadora universalizante. Retomar a ornamentação como um elemento arquitetônico possível ainda se depara com uma resistência do campo profissional e teórico da Arquitetura. Este tipo de antagonismo não foi relevante ao ponto de impedir arquitetos como Le Corbusier, Mies van der Rohe, Frank Lloyd Wright ou mesmo Lúcio Costa ao transicionar do ecletismo para o ethos moderno. O objetivo aqui não é colocar a modernidade como outro bode expiatório, mas mobilizar quais realizações produzidas por este modelo podem ser reposicionadas - tendo em vista que as práticas projetuais e críticas desse pensamento, apesar de estarem num contexto global e fragmentado, ainda tenham lastro na prática espacial e nas instituições de ensino.
O ornamento é uma festa
A proposta de reposicionar o lugar do ornamento não pretende retomar o ornamento do passado. Afinal, a ornamentação já era parte de um sistema das Belas Artes, uma linguagem codificada e baseada num idealismo da antiguidade. O ornamento - e a forma como ele foi representado ou invisibilizado na história da arquitetura - nos permite cruzar diferentes pensamentos e práticas para gerar metáforas que desafiam o modo como o cânone arquitetônico tem pensado o espaço. A aplicação destes elementos virtuosos pode desafiar o significado e papel social de um edifício na sociedade contemporânea, se aliando às discussões de gênero, classe, raça, colonialidade e sexualidade.
A partir de uma contribuição eminentemente dissidente, o ornamento pode ocupar um lugar híbrido e de disputa, como elemento arquitetônico que carrega diferentes significados em si. Num mundo cada vez mais vacilante e fragmentado, o ornamento pode ser um convite à celebração do diverso: uma festa.
Este texto foi elaborado em conjunto pelo Arquitetura Bicha (@arquiteturabicha), um projeto brasileiro que busca a visibilidade de arquitetura feita e performada por pessoas LGBTQIAPN+. Assinam ele: Clevio Rabelo, Fernanda Galloni, Frederico Costa, Frederico Teixeira, Lucas Reitz e Victor Delaqua.